Friday, June 04, 2010

A departamentalização da casa

Algumas especulações sobre a organização da divisão dos cômodos de uma casa através dos setores íntimos, social e de serviço que caracteriza a tripartição burguesa européia do Século XIX. A base incial dessas afirmação advém do capitulo "Maneiras de Morar" por Michelle Perrot, em "A história da vida Privada n. 4". Observações que foram feitas para orientar Graziela Dadalto quando orientava seu trabalho de graduação final.

No livro “Vergonha e decoro na vida cotidiana da metrópole” – que é organizado por José de Sousa Martins – muitos autores alegam que a “departamentalização da casa” (banheiro, cozinha, quartos, sala) e a criação de corredores de passagem que permitem acesso aos diversos cômodos sem transitar pelos espaços privados, reafirmam o papel da intimidade e estabelecem um uso estrito para cada espaço, evocando ordem. A demarcação e a caracterização dos espaços estavam ligadas ao decoro . Este se relacionava (e se relaciona) ao comportamento adequado em relação às formas de interação social, cuidados com o corpo e controle das funções orgânicas e fisiológicas, às quais poderia gerar constrangimento, nojo ou vergonha. Tratava-se de uma demarcação em relação ao que deve ser exposto e ao que deve ser escondido publicamente. Estes procedimentos começaram na corte absolutista que queria se diferenciar da corte medieval. Tanto que bom comportamento passa a ser denominado de “cortesia”. A partir da corte absolutista se propôs paulatinamente o comedimento e o controle em relação a certas funções orgânicas em público. Os autores indicam que o nojo, o asco, as repugnâncias foram socialmente construídas. O “padrão de mundo civilizado” de refinamento de conduta foi um processo social que se inicia antes da era burguesa, que, contudo, radicaliza estes hábitos e protocolos. O racionalismo, o iluminismo, a medicalização da vida, o sanitarismo e o modernismo também colaboram neste processo.
A civilidade impõe certo distanciamento do outro e os cômodos da casa expressam gradações deste distanciamento. Cada local tem suas regras de conduta. A sala é o lugar mais público, pode ser a fachada da casa ou funcionar como um bastidor. Geralmente é o lugar mais arrumado e decorado. Num salão burguês disse Walter Benjamin: “o ‘interior’ obriga o habitante a adquirir o máximo possível de hábitos, que se ajustem melhor a esse interior que a ele próprio.” E sobre o quarto Benjamin escreve que:
“Se entrarmos num quarto burguês dos anos oitenta [1880], apesar de todo o “aconchego” que ele irradia, talvez a impressão mais forte que ele produz se exprima na frase: “Não temos nada a fazer ali porque não há nesse espaço um único ponto em que seu habitante não tivesse deixado seus vestígios. Esses vestígios são bibelôs sobre prateleiras, as franjas ao pé das poltronas, as cortinas transparentes atrás das janelas. O guarda-fogo diante da lareira.”
O quarto se estabelece como o local da intimidade, é o espaço mais privado da casa. A cozinha e o banheiro foram por muito tempo lugares da rejeição .
“Nas casas burguesas de Paris, por exemplo, a cozinha ficava em um cômodo que dava para o pátio, mas que não tinha acesso direto aos cômodos principais. Nas casas térreas inglesas, a cozinha, adjacente aos alojamentos dos criados, continuou situada no porão até o século XIX. Na maioria dos appartements, a “cozinha” não passava de um caldeirão pendurado na lareira. (RYBCZYNSKI, 1996, p.83)”
O surgimento da intimidade na casa propiciou mudanças no arranjo doméstico, funções mais específicas foram dadas aos cômodos como a cozinha e os quartos. Os filhos mais velhos já não dormiam mais com os pais. Criados e empregados tinham seus próprios quartos assim como os demais membros da família, mas todos os moradores da casa ainda faziam as refeições em conjunto (á mesma mesa). Este senso de intimidade doméstica que estava surgindo era o caminho para a casa de família (Graziela Dadalto).
“Domesticidade, privacidade, conforto, o conceito do lar e da família: estas são, literalmente, as primeiras conquistas da Era Burguesa. O Interior Burguês.” (RYBCZYNSKI, 1996, p.63). Na verdade, o conceito de doméstico, de esfera privada é anterior a era burguesa, derivada do tempo dos romanos de domus. essa palavra domus (singular e plural) deriva de dominus, nome por que eram designados os chefes das famílias patrícias.

A instalação de uma comunidade em um território implicava em consagrá-lo. De certa forma o espaço doméstico também apresentava alguma consagração ao sagrado, para os Romanos Janu e Vesta, guardavam as portas e o lar, enquanto que o Deus Lares protegia o campo e a casa;

“O domus é um espaço e um tempo comuns”, um dos aspectos que constitui o lugar. Um espaço-tempo doméstico é compartilhado, é “onde cada um encontra seu lugar e seu nome” (PEIXOTO, 1996). A cidade, a esfera pública, apresenta outra configuração do espaço e do tempo.
O espaço doméstico é onde se ‘vive com’ (convive), se come na mesma mesa. Para os gregos antigos, o conviver ocorria na oiko (casa) dirigida por regras, normas da casa, do lugar nomia. Oikós (de onde deriva a palavra economia) significa a “arte de administrar a casa”, as propriedades de terra, os recursos materiais, e também as relações matrimoniais, paternas, maternas (José Lira).
No entanto, a semântica que domesticidade adquire advêm da era burguesa. Quer dizer, a domesticidade é tida como um conjunto de emoções, relacionada à família, à intimidade, à devoção ao lar, assim como a uma sensação da casa como incorporadora.
A organização da divisão dos cômodos de uma casa através dos setores íntimos, social e de serviço, caracteriza a tripartição burguesa européia do Século XIX.

Referencias:
ARRIVABENE, Graziela Dadalto. A transformação no espaço da cozinha em residências unifamiliares. 2009. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal do Espírito Santo. Orientador: Clara Luiza Miranda.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In. Obras escolhidas (1) Magia e técnica, arte e política. Ed. Brasiliense. São Paulo.
LIRA, José tavares Correia de. Sobre o conceito de casa ou como ver o objeto por excelência do arquiteto sem sair de casa. São Paulo. Revista Caramelo, FAUUSP, N. 5. s. d.
MARTINS, José de Sousa. Introdução. In Vergonha e decoro na vida cotidiana da metrópole. HUCITEC, São Paulo, 1999, pp 9-15.
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo: SENAC: Marca D’Água, 1996.
PERROT. Maneiras de Morar. in A história da vida Privada n. 4.
RYBCZYNSKI, Witold. Casa: Pequena História de Uma Idéia. Ed. Record,
SANTOS, Christiane Sousa do & AGUIEIROS, Gabriela H. O corpo e a intimidade: os espaços do constrangimentos. In MARTINS, José de Sousa. Vergonha e decoro na vida cotidiana da metrópole. HUCITEC, São Paulo, 1999, pp 105-122

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