Tuesday, November 07, 2006

Olhar, ver, sentir

Olhar, ver, sentir: o sentido e significado ...

“A porta é o que escolhe e não o homem” Jorge Luis Borges

As disciplinas de teoria, história da arquitetura e estética apresentam e conceituam obras de arte e arquitetura, admitidas por seu valor histórico para a cultura ou para o campo da arquitetura especificamente. Dá-se valor à beleza, à destreza, ao virtuoso, ao novo, ao original, ao estranho, ao revolucionário, ao memorável, ao primordial, ao que se destaca do ordinário, ao que nos desperta da sonolência, ao que dá sentido à existência e ao que nos guia na vida cultural.
O valor uma obra de arquitetura é evidenciado em sua forma visível, tangível, sensível (na memória e afetividade também, sobretudo coletiva) que tem relação com a experiência sensível com esta obra, através da percepção e da representação. “A forma dá ser à coisa” (DOLLÉ). É sempre algo dado a perceber, sentir, pensar (ARGAN, 1993), um enunciado ou efeito de sentido dado à percepção, ao sentimento e à razão.
Os sentidos, significados e conceitos atribuídos às obras resultam de diálogos com os outros, a crítica. A ação inicial da crítica delimita o fato, perscruta sua inteligência; constata a presença da obra, descrevendo-a e captando seu modo de visar. A forma das coisas apresentam lacunas e pistas através das quais os enunciados se infiltram, interagindo com o objeto visível. O olhar generoso respeita as coisas pelo que são, tenta apreender sua lógica interna diz Michel Mafessoli, como no poema do Arnaldo Antunes:
As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido. As coisas não têm paz. (Arnaldo Antunes, As coisas)

Os critérios para "critica" uma obra de arquitetura ou de arte:
¨ trecho da entrevista da crítica de arte Lígia Canongía “ tudo na lata” alunos da turma de estética 1999
"Nós: Que critério você usa para avaliar uma obra? Eu uso do meu conhecimento, que procuro ampliar cada vez mais e a minha leitura, que é mais da área da história da arte, da crítica e teoria da arte especificamente. Então, eu uso da minha bagagem, sensibilidade, da faculdade de fazer associações e ter insights, capacidades intrínsecas do ser humano. Acho que é necessário ter um olho sensível, mas também um olho educado, que é um aprendizado semelhante ao de qualquer conhecimento. É preciso aprender.
Nós: Então só é capaz de julgar uma obra quem tem bagagem e conhecimento teórico? Para julgar sim, porque é preciso ter critérios para esse julgamento. O conhecimento aparelha melhor para emitir algum juízo crítico e não ser irresponsável, é preciso se apoiar em algumas coisas que possam sustentar o julgamento."

De acordo com Fayga Ostrower, o mundo de nossa sensibilidade é um mundo de diálogos com as formas das matérias, físicas ou psíquicas. Nas várias linguagens da arte, o conteúdo expressivo da obras é articulado de modo formal, nos termos característicos de cada linguagem, os valores e as vivências dos artistas são traduzidos em formas espaciais. Como substrato e última referência encontramos formas e imagens no espaço.
Os sentidos são fundamentais em nossa apreensão do espaço diz Fayga Ostrower. A orientação no espaço que nos proporciona o conhecimento de distâncias, proximidades e intervalos, magnitudes, profundidades e superfícies, é incorporada como referencial primeiro em nossa auto-percepção e concomitantemente, nas formas simbólicas que criamos.
A noção de forma é modo de ser, feitio, aparência, configuração, disposição. A idéia de forma sempre abrange um princípio organizador, estruturador, uma ordenação que se torna manifesta. Lembramos que para que se perceba uma forma, quer de objetos, de acontecimentos ou de processos, se faz delimitações. Estas podem ser de ordem física e mental, de acordo com a natureza do fenômeno. Mas, são as referências da percepção. As delimitações segregam algum fenômeno da totalidade do acontecer, destacando-o como um contexto próprio, uma forma, um conteúdo expressivo. Tudo que se torna significativo é avaliado através de referências (OSTROWER). O processo criativo necessita de um referencial para exercitar a linguagem. O mesmo se dá com a análise de uma obra.
Estabelecer um referencial é essencial na percepção e análise de uma obra de arquitetura.
Argan nos diz que este referencial é construído na história, que vai contextualizar a obra no tempo e no espaço, buscar seus motivos, seus fundamentos sociais, culturais, econômicos e tecnológicos, e ainda, seu valor permanente. Flávio Motta diz que é preciso um olho coletivo (dos outros e de muitos) para construir o significado de uma obra (MOTTA, 1973).
A obra de arte é uma obra que nós fazemos para só depois sabermos mais completamente, como fizemos (...) com o tempo ela mostrará aquilo que no momento não mostra (...) Isto é para dizer que existe um olho na história.
Merleau Ponty (1999) diz que é nos outros que a expressão adquire relevo e se torna verdadeiramente significação. A história desdobra a obra no tempo, no espaço, em discurso, em outras obras, na sua sobrevivência no espaço e na memória enquanto obra.
A história, como uma produção social de leituras cumulativas, apresenta a obra de arte como um modo de ver a vida social (ethos), sempre renovável de acordo com os instrumentos e as necessidades do presente.
A história, segundo Flávio Motta, é “conseqüência da superposição dos sistemas de relação e os novos relacionamentos dos meios de produção”, que permite situar o trabalho artístico de modo não cristalizado, como trabalho criador, “que intensifica e aprofunda as relações entre os homens”.
Fazer história é fazer relações entre tempos, entre coisas e lugares; relacionar obras entre si, comparar e discernir procedimentos artísticos, técnicos, de composição, classificar e hierarquizar em estilos e linguagens.
Cada historiador tem seus próprios referenciais teóricos, condiciona-se ao desenvolvimento de sua pesquisa suas linhas de pensamento e ideologia política. Ainda o historiador ou crítico observa restrições quanto ao que pode dizer (tanto pode ser relativo à censura quanto à necessidade se fazer compreendido), cultiva seu gosto pessoal, tem seu estilo. Do mesmo modo, os “paradigmas” da ciência e da arte têm limites condicionados pelos seus recortes, corpus, objetos, contexto histórico, etc..
Diz-se que a essência do conhecimento histórico está ligada às maneiras como se decide sobre aquilo de que haverá história. Porém ficam de fora, os incompreendidos no seu tempo (Van Gogh, Rimbaud, Artaud), os censurados (construtivismo russo, o cabaret), os out-siders, os marginais, mas também, os excluídos (artistas fora do circuito da arte, arquitetos a margem do mercado, fora do mundo star sistem ou fashion).
A seleção dos objetos artísticos e dos conceitos veiculados constitui um conhecimento mais interpretativo que factual mais seletivo que global, no sentido de expressar o “espírito de um tempo” ou um modo de ser datado. No final das contas, o que vale é: menos lembrar os fatos do que reescrever a história (Jacques Lacan, O seminário 1), e construir seu próprio ponto de vista na correspondência com o objeto.
Reescrever a história de uma obra, descobrir o que esta obra visa, tentar captar seu enunciado.
A enunciação é a colocação da língua em funcionamento por um ato individual de utilização, enunciado é um objeto que individualiza um sujeito no seu campo de intervenção. “A enunciação típica da arte de expressão se dá no entrecruzar entre os espaços in e out da obra, que deixam as pistas que solicitam imaginação do observador”, transformando sua condição passiva em ativa, desvendando os indícios e rastros deixados pelo autor da obra (PENUELLA, 1990).
Processo de leitura (passos provisórios):
Na leitura vai se investigar como a obra busca seu significado, através de suas formas, os caminhos iniciais da leitura são indicados por sua configuração espacial e formal.
Implica em verificar as relações com o contexto histórico (sociedade, cultura, arquitetura, arte), contexto físico (sítio); tecnologia; programa (função, usos, sociabilidade); legislação, normas construtivas (político, econômico e disciplinar); com a pesquisa pessoal do arquiteto (processo projetual, partido, composição).
Por passo e por partes, vai se considerar na obra em seu aspecto plástico, espacial, a morfologia, a topologia, as tipologias espaciais, construtivas, funcionais, a composição, a linguagem, o estilo, os símbolos, as inovações; os valores que quer expressar, os efeitos sensíveis e cognitivos que quer causar, o que quer dizer...
Em detalhes, vai se investigar como é a composição da obra (plástica, construção), que escolhas fez o arquiteto no processo de concepção do projeto, sua reflexão sobre o fazer, os meios e a sociabilidade; vai se verificar como são trabalhados a técnica construtiva, os materiais e o conforto dos ambientes; como dispõe os elementos, posiciona e relaciona partes, elementos e espaços entre si e no todo; como se coloca na cidade ou natureza, como se relaciona com entorno imediato e o território, o que visava no uso do espaço privado, público, coletivo e individual e a recepção efetivada concretamente. Como articula a estrutura, vedações, coberturas, espaços, luz, percursos; como relaciona os planos, aberturas e fechamentos; como se expressa plasticamente nos vazios, vãos, nos volumes, nas superfícies, nos elementos construtivos e decorativos pela cor, texturas, ritmos, escala, materialidade. O que torna visível o que esconde....
A partir dessas considerações pode-se começar a interpretar a obra. A percepção sensível vai dizer, a intuição vai soprar por onde começar, “o que em mim sente está pensando” diz Fernando Pessoa. As referências teóricas e os critérios a serem usados para analisar a obra e atribuir-lhe um valor, a obra mesma é que vai suscitar....
“segundo o veredito nitzscheano, você não conhecerá nada por conceitos se você não os tiver de início criado, isto é, construído numa intuição que lhes é própria: um campo, um plano, um solo, que não se confunde com eles, mas abriga seus germes e os personagens que os cultivam” (Deleuze & Guattari, O que é a filosofia?)
Bibliografia

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1981
ARGAN, Giulio Carlo. Guia de História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1993
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? . Rio de Janeiro: Editora 34, 1992
DOLLÉ, Jean-Paul. Longe do lugar, fora do Tempo. www.vitruvius.com.br
MAFESSOLI, Michel. No fundo das Aparências. Petrópolis: Vozes, 1999
MERLEAU PONTY. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1999
MOTTA, Flávio. Textos Informes, São Paulo: FAUUSP, 1973.
OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1990
PENUELLA, José. Notas do Curso “Leituras do Pictórico”, sobre a enunciação de uma obra. São Paulo: PUC/SP, 1990
PEREIRA, Michele; CUNHA, Érica; HENRIQUES, Rodrigo Paes; GOMES, Valéria e MATTEDI, Thaíza. Entrevista com Lígia Canongía: “ tudo na lata” na Disciplina Estética e Arquitetura. DAU-UFES, 1999

Friday, September 29, 2006

Entre paisagem/arquitetura

Resenha do texto “entre paisagem/arquitetura”
Do texto: BOYER, M. Christine. Cognitive Landscape. In. SPELLMAN, Catherine (ed.). Re-envisioning Landscape/ Architecture. Barcelona: Actar, 2003. pp. 9-15.

O “entre paisagem/arquitetura” ou a relação transversal entre paisagem/arquitetura é o centro da abordagem de M. Christine Boyer neste texto, que ela inicia com as seguintes perguntas.
Como vencer as diferenças entre paisagem e arquitetura que parecem nunca serem conclusivas? Como revisar e estruturar mais uma vez um grupo de interações cruciais, tais como: paisagem natural e paisagem urbana (landscape/ cityscape), natureza e tecnologia, sujeito e objeto, aquilo que tem significado e aquilo que não tem ou perdeu. Boyer fala em regular, endereçar este cruzamento, no momento presente, ultrapassar os limites entre arquitetura e paisagem e as ciências cognitivas. Para ela, há pouca consciência das ciências cognitivas entre arquitetos, paisagistas ou urbanistas para eles raramente questionam a maneira de pensar de computadores e subsequentemente como as pessoas, extraem e evocam significados quando observam, fazem leituras, escrevem e falam. M. Christine Boyer discute a paisagem sob a perspectiva da cognição. Embora arquitetos paisagistas raramente se refiram ao assunto diretamente, todavia atribuem significados subjetivos, percepção e memória ao ambiente natural. Há muitas questões a respeito dessas atribuições de significado.
Por exemplo, como são românticos e nostálgicos os sentimentos engendrados pelas vistas paisagísticas? A natureza é sempre um lugar para escape, o retorno ao jardim e o Éden ou é um lugar de restauração e de salvação? Como contar a história dos jardins ou paisagens? Como as paisagens enunciam valores de harmonia, repouso, equilíbrio e orientação? E do mesmo modo, memória e jardins ou paisagens projetadas? De fato, por que a memória ou lembrança estão mesmo relacionadas à natureza? Certamente, por outro lado, é antiga a localização de memoriais em parques ou associação entre morte e ambiente natural. O espectador deve estar imerso na natureza para comunicar esta mensagem? O observador também se relaciona ao meio ambiente por meio da fotografia, cinema e textos escritos? Estes meios de representação podem expressar a maneira como as paisagens foram concebidas e experimentadas?
O texto de M. Christine Boyer explora as respostas a algumas dessas questões focalizando quatro diferentes exemplos de cognição e paisagens arquitetônicas. O paradigma simbólico e paisagens pinturescas; a memória associativa dos surrealistas e Parc Buttes-Chamont, a discussões de cognição e centralidade dos símbolos e o livro A Imagem da Cidade de Kevin Lynch e finalmente o efeito dos computadores sobre produção de novas formas visuais e a proposta de Rem Koolhas para o Parc La Villette (1983), representado no livro S, M, L, XL (1995).

Modelo de cognição: o paradigma simbólico e modo de cognição.
A análise se baseia principalmente nos estudos de Marvin Minsky sobre frame-like modes of perception. Neste ponto ela fala de dois tipos de memória: manipulação de símbolos de acordo com regras combinatórias pré-existentes tal como na arte clássica da memória, originada com os gregos – esta dá origem as ciências cognitivas do paradigma simbólico, e, o segundo modelo de conexão difunde atividades através de redes e unidades interconectadas, diacronicamente e sincronicamente, também pode ser chamado modelo combinatório.
O processo cognitivo é admitido como distribuído e paralelo e não linear e causal, a informação não pode ser localizada mas estocada em conexões e links (elos) entre unidades e distribuída através da rede. Memória se torna efeito de relações ou diferenças entre conexões (associações).

Modelos de associação de percepção
Neste ponto M. Christine Boyer cita os surrealistas André Breton e Aragon e sus passeios pelo Parc Buttes-Chamont. Breton difunde nos manifestos surrelaistas a falência dos velhos sistemas de razão e lógica e a necessidade de achar novos procedimentos de investigação.
Aragon escolhe o Parc Buttes-Chamont devido sua contraposição ao modernismo geométrico e funcionalista. M. Christine Boyer diz que os surrealistas tem grande poder de se encantar certos lugares, certos aspectos de objetos cotidianos. Este encantamento ativa um tipo de frisson entre o espectador e o ambiente, entre sujeito e objeto. Sobre a natureza Aragon conclui que o verdadeiro significado da palavra (natureza) é o senso de mundo exterior, o senso de inconsciência. “Dessa forma natureza é outro termo do senso mítico”. O modelo de percepção associativa de Aragon aproxima-se ao estado de sonho e revela fascínio pela cognição intuitiva, busca associações espontâneas entre palavras e imagens de paisagens, sendo a linguagem expressão de forças psíquicas trazendo o inconsciente à tona, podendo provocar a imaginação.

Cognição e processo simbólico de cognição
M. Christine Boyer aborda, entre outros, um estudo de Gyorgi Kepes sobre a percepção das formas, cores, texturas e dimensões que se expande, se retrai, cresce e reduz, ou seja se movimenta. Segundo Kepes, nós estamos aptos a metamorfosear opticamente. E esta também é a essência da construção do símbolo, a transformação incessante, mudanças de substância e forma no fluxo do sentido dos dados... Hoje a chave dos trabalhos criativos é a transformação, translação da experiência direta em símbolos, que somam a experiência às formas de comunicação ‑ o transporte de símbolos invisíveis é o que acontece na internet e nos chips dos computadores. O modelo de imagem como espelho é obsoleto, novos modelos são “pictures of process”, revelando movimentos escondidos no interior e fora de nós.
Deste modo, M. Christine Boyer diz comparando com a questão acima, que o trabalho de Kevin Lynch ao definir um léxico de símbolos restringindo as interações entre os indivíduos e ambiente, estreita o alcance ao domínio formamalista,,, para Boyer é evidente que se requer novas lógicas e novos processos simbólicos para entender como a mente trabalha e como a paisagem gera significado.

Informação Visual e modelos de percepção associativa
M. Christine Boyer cita o trabalho de Rem Koolhas, mas, também o de Robert Smithson (land art e site specific) que para se familiarizar com os lugares que iria intervir documentava por meio de fotografias, filmes e livros. Em sua preocupação site/ nonsite, Smithson visitava o sitio documentando-o, selecionando ‘samples’ (amostras) de pedras, pedregulhos, entulhos daquele terreno. Então, Smithson levava para a galeria um display com o nonsite: um arranjo de mapas, fotografias, samples analógicos e explicações verbais que referenciam a falta, contudo, especificando o sítio (specific site)... Ele confundia os limites entre a ficção e fato neste transporte de samples (amostras) e imagens, entre a natureza e o self...

Sunday, May 07, 2006

Texto e Argumento para arquitetos

"Quando construímos casas, falamos e escrevemos sobre elas." Wittgeinstein
"Não há homem sem objetos técnicos, da mesma forma que não há homem sem linguagem." Pierre Lévy

A arquitetura não se descreve, apresenta ou representa por um único meio ou linguagem: desenho, discurso, imagens fotográficas ou modelos analógicos ou digitais. Admitindo que todo meio é insuficiente como enfoque descritivo ou interpretativo, arquitetura, imagens e palavras se buscam mutuamente, complementando-se. Afinal, a arquitetura é um modo específico de pensar, caracterizado pela concepção de objetos por meio do projeto, que por sua vez, é linguagem gráfica representacional e verbal a ser interpretada. Para Peter Einseman, o caráter crítico de algumas obras de arquitetura desloca leituras convencionais e ressalta a mediação transformadora do texto crítico. A retórica da palavra é importante para o arquiteto. A filosofia pode dar base para um discurso rigoroso, que inclui discutir sobre os limites da atuação social e profissional, da ética e da liberdade.
Desde Nietzsche, os fatos foram suplantados pelas interpretações. Isso desloca a questão da verdade como fim para o processo de sua busca, um percurso onde aquilo que dá a pensar, aquilo que provoca o pensamento é mais importante. A busca da verdade é provocada pelo encontro de algo (o acaso dos encontros e a pressão das coações: concluir um curso, entregar o trabalho). Este algo (objeto) quer ser decifrado, ocasionando a reversibilidade entre o objeto escolhido pelo pesquisador, o qual se define por meio dele, diria Jorge Luis Borges “A porta é o que escolhe”. As externalidades se colocam, o pensamento não vem de dentro. Como diz Rimbaud, “é errado dizer eu penso, deveria ser dito: pensa-se em mim”. Deste modo, a questão da verdade deixa de ser subjetiva (psicológica) e passa a ser intersubjetiva, propriamente, uma conjugação de percursos, multiplicando os encontros, mas, também os conflitos sobre as interpretações das obras humanas.
Com o abalo da noção de autoria, hoje é impossível saber quem dá as regras na arte, uma pergunta se coloca para o arquiteto: como legitimar o projeto perante a multiplicidade de vozes e gostos? ou ainda, como “produzir uma multiplicidade consciente de efeitos em seu trabalho”? (VATTIMO, 1995). Para o filósofo italiano, a mudança da noção de beleza, e acrescentamos, da noção de função dada pelas mudanças no modo de vida, na tecnologia e no conhecimento, tornam necessárias revisões do modo de ver e criar os objetos plásticos-estéticos, assim como dos juízos sobre eles.
Quando o objetivo do trabalho é o exercício da palavra escrita, o desenvolvimento e a sustentação de argumentos teóricos, na verdade se trata de encontrar o problema, criar as condições de como o problema é determinado, dispondo os seus termos e meios de encaminhamento. A solução (a conclusão) não importa tanto quanto desenvolver as implicações decorrentes da questão colocada.
O questionamento impele à subordinação do algo objeto a um determinado contexto (um conceito que só faz sentido em relação à arquitetura). O pensamento que este conceito descreve relaciona o problema ao seu contexto, seu locus. Neste sentido, o percurso do pensamento é muito mais uma descrição topológica ou topográfica que uma história. Uma descrição rigorosa requer ir ao fundo da questão. Alguns procedimentos podem ajudar e a avaliação do produto (do texto ou do projeto, em certos casos) se baseia neles (CARRAHER, 1984):
· Buscar ter consciência pragmática da linguagem, reconhecer e apreciar seus usos práticos.
· Ir ao cerne do problema enfocado, avaliando a coerência de posições teóricas (ou seu sentido) e levantando questões que podem ajudar a esclarecer a problemática discutida.
· Distinguir entre questões de fato, valor e conceito.
O fato frequentemente é definido como acontecimento, como produto da experiência, da observação, torna-se dado da questão ou problema suscitado. Os fatos são interpretados, não se sustentam por si mesmos, fazem sentido relacionados a um contexto ou em um texto. Valor, provisoriamente, pode ser a qualidade pela qual algo é estimado, tem significado artístico, histórico ou cultural.
Conceito, no dicionário é definido como representação de idéias por meio de suas características gerais, é uma ordenação e um corte no conhecimento (fil.). No campo da arquitetura e urbanismo, Carlos Brandão, afirma que o conceito não é apenas uma elaboração mental prévia, destinada a ser substituída pelo projeto no qual ela seria totalmente absorvida, mas é o medium histórico da linguagem através da qual nos constituímos e compreendemos o mundo em que vivemos. Nessa chave o conceito servirá não apenas para o trabalho do arquiteto, mas, sobretudo, para a compreensão do produto do seu trabalho pelo habitante. O conceito tem uma constituição também intersubjetiva.
De acordo com Carlos Brandão, leigos e arquitetos compartilham uma matriz de compreensão constituída, entre outras coisas, pelos conceitos e pela memória. A percepção ativa uma rede de conceitos, buscando o sentido daquilo que é percebido, mesmo que se apresente pela primeira vez aos olhos. O conceito e a percepção são chaves da compreensão do espaço e da comunicação entre o arquiteto e o fruidor.
No processo de pesquisa, os questionamentos “decifrados” constituem argumentos Argumentar é defender idéias que possuem uma conclusão. Como o fim não interessa muito, consideraremos no lugar de conclusão, as noções de desenvolvimento, encaminhamento, agenciamento – a sua apresentação recorre a termos (evidências, premissas, pontos de inflexão, relevos, registros, dados) para fundamentar o seu encaminhamento, o desenvolvimento da questão (ou defender a conclusão, no sentido estrito da academia). Os termos apenas fazem sentido, interconectados à maneira de um texto (discurso) ou hipertexto, conjunto de elos navegáveis ou nós interconectados, intrincados e tramados. Parte-se do princípio, de que o que não se sabe não se diz. Um texto truncado (que não flui) é resultado de um pensamento mal elaborado ou um emprego equivocado da linguagem. É importante obter repertório, dominar a linguagem. Encontrado o problema, o passo seguinte é a construção um plano de trabalho, um mapa.
“segundo o veredito nitzscheano, você não conhecerá nada por conceitos se você não os tiver de início criado, isto é, construído numa intuição que lhes é própria: um campo, um plano, um solo, que não se confunde com eles, mas abriga seus germes e os personagens que os cultivam” (DELEUZE & GUATTARI, 1992).
Com a tecnologia digital, verifica-se a ampliação da consciência, o pensamento deixa de ser uma experiência predominantemente interna, pois, interage com o computador e com internet, multiplicam-se as pessoas com se relaciona. As novas tecnologias da informação multiplicam também as possibilidades oferecidas pelo sistema e a integração criativa do usuário (LÉVY, 1993). Com as novas possibilidades da informática, o pensamento assume a condição de mapeamento, que ajuda a simplificar (sintetizar) a realidade, a diagramá-la e modelá-la. Contudo, não se pode confiar que um “modelo” sintetizador ou um diagrama sejam representações da verdade.
Recurso ao senso crítico implica que além de obter conhecimentos do campo de conhecimento próprio e suas vizinhanças (princípios de contigüidade e radiância), deve-se levantar dúvidas sobre aquilo que comumente se acredita (o senso comum), manter os signos em circularidade e movimento (conexões e associações). Deve-se explorar e refletir sobre as alternativas disponíveis, sejam argumentos, sejam soluções de forma, técnica, elementos arquitetônicos, materiais, sejam valores ou conceitos que os justifiquem.
O esclarecimento de questões envolve as particularidades de cada campo específico. Quando se trata de conhecimento descritivo, narrativo, especulativo, reflexivo predominam conceitos, quando se trata de conhecimento científico a prospecção prevalece, quando se trata de arte são percepções e afetos que entram em jogo (DELEUZE & GUATTARI, 1992).
Os termos que esclarecem os fatores do problema enfrentado operam por referência e concernem “a uma relação com o estado das coisas” (suas escolhas amparadas em argumentos ou afetos), não se restringem a simples opiniões ou preferências casuais. Conhecer é expandir os limites do repertório, do estilo e da interação entre estes.
O caminho que se percorre na aquisição de conhecimentos, deve ser demarcado (escrito), pois a avaliação se baseia nesta inscrição. É isso que possibilita ser compartilhado com outros, afinal, o conhecimento é social ou não é conhecimento. Por outro lado, deve-se, também contemplar outros pontos de vista, para que as posições tomadas não sejam parciais ou tendenciosas, o conhecimento é multidimensional. O mundo deve ser analisado, contemplado e usufruido de modo inteligente e flexível.
Embora Deleuze não vá concordar comigo, penso que se requer alguma modéstia em relação ao conhecimento contingente ao enfrentamento das situações problemáticas (escrever um texto ou fazer um projeto). Todo conhecimento é parcial e provisório, depende do nível de desenvolvimento da pesquisa (FOUCAULT, 1979). A dúvida não deve paralisar, qualquer lugar é onde se pode começar.

NOTA
Mapa: O mapa é aberto e desmontável, pode ser conectado em qualquer uma de suas partes ou dimensões, é reversível e suscetível de receber montagens de qualquer natureza, ser (re)construído por um indivíduo ou por uma formação social, como obra de arte ou ação política, como uma meditação. Ele tem entradas múltiplas, "(...)contrariamente ao decalque, que volta sempre ao mesmo". É preciso, no entanto, não opor os dois sistemas, isso restaura um dualismo binário: "É preciso sempre projetar o decalque sobre o mapa". O decalque pode estruturar um rizoma, codificá-lo, "neutralizando assim as multiplicidades segundos eixos de significância e de subjetivação", mas o que o decalque reproduz do rizoma são apenas os impasses, os bloqueios, seus pontos de estruturação. (DELEUZE e GUATARRI, 1995).

BIBLIOGRAFIA

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Linguagem e Arquitetura: o problema do conceito. In. Interpretação de Arquitetura site da Escola de Arquitetura de UFMG
CARRAHER, David W. O Senso Crítico (...). São Paulo: Pioneira, 1984.
DELEUZE, Gilles & GUATARI, Felix. O que é filosofia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992
DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Felix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol 1. Rio de janeiro: Ed. 34, 1995.
EINSEMAN, Peter. Estratégias del Signo. Giuseppe Terragni y la idea de un texto crítico. Arquitetura Viva. Madrid. n. 48, mai-jun. 1996pp. 66-69.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, 17ª Edição
KERCKHOVE, Derrick. O senso comum, antigo e novo. In. Imagem-Máquina. Rio de Janeiro: Ed. 34, pp. 56-64.
LÉVY, PIERRE. As Tecnologias da Inteligência - O Futuro do Pensamento na Era da Informática. São Paulo: Editora 34, 1993.
VATTIMO, Gianni. Entrevistado por Jorge Mário Jáuregui. Revista AU, São Paulo. n. 57, dez-jan. 1995, pp. 80-81.