Thursday, March 20, 2008

O problema do objeto da arquitetura 1


(...) toda maneira, para o homem, de encontrar o objeto é, e não passa disso, a continuação de uma tendência que se trata de um objeto perdido, de um objeto a se reencontrar. Jacques Lacan [2].
A frase do Jacques Lacan se refere à relação entre sujeito e objeto, cujo esforço de busca, um procedimento de repetição, traz consigo a contradição da impossibilidade da recuperação deste mesmo objeto, e o conflito inerente em toda busca do objeto, da repetição sempre procurada e nunca satisfeita[3]. A analogia com a arquitetura se coloca nos seguintes termos, a arquitetura tem um objeto? ou seria a arquitetura, tal como a história, uma disciplina sem objeto particular? Considera-se como Claude Lévi-Strauss que “a história é um método ao qual não corresponde um objeto específico”[4]. O objeto se diferencia do sujeito que o conhece ou transforma, sendo suscetível de experiência.
Objeto do lat. objectus,us 'ação de pôr diante, interposição, obstáculo, barreira; objeto que se apresenta aos olhos'. (HOUAISS).

Os objetos situam-se no espaço, que por sua vez “não é nem um objeto exterior nem uma vivência interior” ao homem, como diz Heiddeger. Para ele homem e espaço são termos que dizem respeito ao modo de habitar. A linguagem é o modo como o homem exterioriza e converte em objetos da consciência, as coisas, o espaço e o seu modo de habitar o mundo.
Em arquitetura, o objeto que se pretende absoluto e único, é clássico, diferencia-se do seu entorno pela precisão de suas partes constituintes e pela clara demarcação de seus limites. A arquitetura clássica, “em contraste com o que a rodeia é completa e total, tem unidade”[5]. A unidade entre a casa (pequena cidade) e a cidade (grande casa), alegada por Leon Batista Alberti em seu De Re Aedificatoria, é estabelecida como um procedimento intelectual, em que o objeto e a relação entre objetos não se opõem como figura e fundo, antes constituem resultado de uma ação histórica com critério universal.
A cidade é configurada pela prática social, esta precede a idéia de espaço, “não há espaço que não seja arquitetônico”. Porém, arquitetura está associada a outras artes intelectuais e representativas da cidade, o desenho e a construção confrontam-se com as forças da natureza, articulando a separação da concepção do fazer a forma sensível.
O desconsolo de Alberti de perceber o ofício de construir “na situação de desamparo, entre o erro a obsolecência”[6], induz a necessidade de definir um código com base numa confirmação histórica e como conhecimento. A mímese resgatada dos antigos por Alberti, introduz o mecanismo da consciência da impossibilidade da repetição. Pois, baseia-se na emulação e superação dos antigos. A mímese é imitatio, um problema social, de educação, de cultura, de bom gosto, propõe-se intensificar contato com uma época áurea, de genealogia nobre. A alteração fundamental no problema da mímese no renascimento ocorre na passagem de uma posição poética (taxis aristotélica)[7] para uma posição retórica, ou seja, de uma ordem normativa interna e estrutural que torna belo o objeto, para uma ordem simbólica, na qual se busca a estratégia de provocar o efeito desejado em uma platéia específica. A escolha de um arbitrário cultural, deslocado de seu contexto histórico original, é política e não oferece garantia de certeza de controle da experiência projetual, ao contrário, a transposição histórica ensejada para finalidade contingente, evidencia os perigos do pluralismo lingüístico e das contaminações.
A dialética entre antigüidade e presente precisa partir da tradição, para criticar a cidade medieval, sem ordem preestabelecida, estruturas ‘dispersas’ e com ornamentos ‘incoerentes’. O De re aedificatoria de Alberti, que acentua as condições de concepção do projeto, difere substancialmente do De Architectura de Vitrúvio, para quem a arquitetura se enquadra no campo vasto das técnicas da construção. Para Alberti arquitetura se enquadra no âmbito da cidade, interpretação e comunicação das formas visíveis, como a pintura e a escultura, porém as ultrapassa, porque modifica a natureza, esclarece as diferenças entre “devir da natureza e ação humana”. A cúpula da Catedral de Florença de Brunelleschi como paradigma, pois esta não representa o espaço e sim o realiza.
O De Re Aedificatoria, distingue duas categorias: ornamento e estrutura, beleza inata ‑ estrutura; beleza acrescentada ‑ ornamento. Ornamento são formas expressivas, conteúdos das instituições civis, religiosa, legislativas e militares (coisa pública ou res pública). As instituições interligam monumento e cidade. A cidade não é mais um espaço para proteção, fechado, como o da descrição de Julieta em Romeu e Julieta de Shaekespere
“ There is no world without Verona walls, but purgatory, torture, hell itself. Hence-banished is banished from the world”.
A cidade torna-se um centro de poder, com atividades mercantis e produtivas. O mundo se amplia além dos muros da cidade, nesta ampliação do território, assim a cidade cresce e enriquece.
Um Estado deve apelar à retórica, então o problema do significado, submete o da ordem matemática, a ser um subsídio de produzir um objeto que é um lugar. Um produzir que dá forma, uma criação que organiza e instaura uma realidade nova(a), a idéia de poiesis de Aristóteles.
(a) Para Aristóteles, as formas são essências responsáveis pelo ser das coisas, para ele não há o antagonismo platônico entre matéria e idéia, pois as coisas passam a existir para Aristóteles, na medida em que a forma universal (essência) se individualiza na matéria, pelo uso das faculdades experiência, inteligência e ciência. Estas são a causa formal das coisas.
Por outro lado, produzir, segundo Heiddeger é deixar aparecer, tornar presente, termo que tem estado oculto sob a noção tectônica, transformações materiais devido forças internas.
Mímese e ordem são metodologias da arquitetura clássica, operam com semelhanças e identidades mediante transposições, o conhecimento porta-se de modo diferente, quer afastar-se das “metáforas e desdobramentos” como diz Niezsche. A intenção de confirmar a arquitetura como conhecimento choca-se com os recursos utilizados. O processo da repetição e identidade define o mundo da representação, ao qual o pensamento moderno se contrapõe. Gilles Deleuze nos diz que “o mundo moderno é o dos simulacros”[8], que na arte moderna provoca o problema da “crise da aparência” e sua contrapartida, a pretensão de essencialidade, que se torna o princípio de construção almejado da arte moderna[9].
O declínio do objeto absoluto clássico pode ser verificado tendo como pano de fundo o paisagismo inglês, de conceito pinturesco, que é pontuado de edifícios, extratos de história, traduzidos em objetos agora relativos. Neste jardim planejado para ser natural, preconiza-se que “o percurso racional da civilização é natural”[10].Por outro lado, o Campo de Marte de Piranesi adverte que é na cidade que o somatório de objetos arquitetônicos, que buscam caráter e expressão são privados de sua autonomia. O equilíbrio entre contexto e objeto, cidade e edifício, se articulava como uma luta entre as “ instâncias da ordem e o domínio do informe”, tendo com resultado “ a destruição do próprio conceito de arquitetura”, de acordo com Manfredo Tafuri, constituindo sua crise do objeto.
Nos Carceri de Piranesi, Tafuri lê a enunciação da destruição do conceito de espaço na dissolução da centralidade da composição perspéctica, que denuncia o questionamento da “ordem antiga correspondente a totalidade da desordem”.
O processo de afirmação do homem exigiu tempo, foi preciso que a atividade do espírito parasse de se mover no terreno da semelhança, e passasse a ocupar-se em discernir: estabelecer unidades e diferenças. Assim, a autonomia da estética frente às outras expressões humanas não ocorreu em Rafael, mas em Shakeaspeare. Não é no campo da visualidade que este ocorreu mas no drama.
Em Shakeaspeare, a arte se torna independente da arte clássica, propondo a livre-expressão das vicissitudes do humano: os conflitos psicológicos, morais e de conduta, o medo, a loucura, as fatalidades, expondo o problema da dúvida, da escolha, da paixão. A tarefa imediata é despertar a livre especulação, que abre a senda do desenvolvimento da estética como elemento integral da filosofia moderna.
Na genealogia da palavra moderno, há a questão estética que fundamenta a “Querela entre Antigos e Modernos” questiona-se o problema da natureza e origem da composição na arquitetura. Ainda, se a beleza é conseqüência de regras válidas ou vem imposta pelo prestígio dos antigos.
Fr. Blondel acreditava que existia uma beleza em si, proporcionada pela natureza, e as proporções que os arquitetos combinam as formas demonstravam que carregavam em si a idéia de beleza. Blondel ligado à academia real interessado numa linguagem universal, contra a degenerência individualista.
Claude Perrault, acostumado ao método analítico de diversas espécies e buscas de causalidades. Invocava a diversidade de opiniões. E discordava da idéia que a regras de proporção deveriam ser invariáveis. Para ele existiam regras diversas para construir de acordo com diversas intenções de fazer um edifício maciço ou elegante. Perrault distingue dois tipos de beleza: a de valor permanente e universal e a que tem valor transitório, ligada ao costume e a moda. Perrault dizia que regras feitas a 3000 anos não pode regular o que se faz hoje (Sec. XVII). Tudo muda inclusive a beleza e as idéias.
A querela faz parte de um processo de separação do modelo da arte antiga. O partido dos modernos insurge-se contra a idéia de o classicismo francês tem de si mesmo. Assimila o conceito aristotélico da perfeição ao de progresso colocado pelas ciências modernas.
Os modernos põem em questão o sentido da imitação dos modelos antigos, em face das normas de uma beleza absoluta, deslocada no tempo, e elaboram critérios de um belo relativo e condicionado pelo tempo. Os modernos articulam a auto-comprensão do Iluminismo como um recomeço epocal.
Aqui o objeto da arquitetura que vinha sendo o problema de dar forma e conceber, seja pela técnica seja pelo desenho, se consolida no aspecto da concepção.
O problema para Boullé é sobre o papel o projeto desempenha no seu tempo. Para ele o projeto é o centro da definição das normas. A argumentação sobre a linguagem torna-se o eixo do raciocínio: “É mais importante saber o nome das coisas do que saber o que estas são”.
Arquitetura não é arte de construir, mas a arte de conceber diz Etienne Louis Boullé, que vê ambigüidade nos termos com que Vitrúvio define os fins que a arquitetura visa: utilidade, estabilidade e beleza, na distinção entre concepção e execução, meios e fim.
Quando Boullé diz que arquitetura não é arte de construir, porém a arte de conceber imagens, de desenvolver formas que sintetizam idéias, que não se estabelecem por normas, mas no processo analítico. O pensamento que se manifesta na forma é social e político, é humano, por isso deve ser geométrico e regular, a natureza está repleta de coisas informes. A regularidade geométrica fala, enquanto o disforme é mudo. Adota-se o uso da razão para apreender das coisas aquilo que é absolutamente necessário.
Para Boullé, a arquitetura não é relativa ao espaço em que se situa, é uma forma do pensamento sobre uma natureza informe e irracional. O elemento mais simples é o mais perfeito, o corpo puro é o mais perfeito. O significado deve aparecer na forma, Boullé diz que ao olhar um objeto, o primeiro sentimento experimentado “é de que maneira o objeto nos afeta”. Denomina de caráter “o efeito que resulta deste objeto e que o que causa em nós uma determinada impressão”. A linguagem é o mesmo que caráter. A arquitetura fala.
No séc. XVIII, definitivamente, a arte se torna independente da arte clássica (grego-romana) e propõe a livre-expressão. O problema da dúvida, da escolha, da paixão. A tarefa imediata é despertar da livre-especulação, que abre a senda do desenvolvimento da estética como elemento integral da filosofia moderna.
A imitação da natureza é considerada trabalho mecânico e não arte. Não basta imitar pacientemente a natureza é preciso que o objeto fale ao nosso sentimento”. No século XVIII, o conceito de natureza como expressão ideal, não individual, no qual a beleza é a perfeição figurada na matéria, convive com o conceito de natureza que tende a imperfeição de cada espécie, para cada objeto. Não é o tipo central que será o testemunho da intenção criadora da natureza é o indivíduo ou o monstro. Mas, prevalece a noção de uma natureza como uma intenção que visa criar diferenças, e não tipos específicos. Não há criador superior ao poder criativo da natureza. Neste sentido, o homem objeto central do conhecimento a partir de então participa “das intenções permanentes da natureza (Starobinski, 1994).
A arte é o prolongamento humano de uma fecundidade cósmica.
Ao gênio é colocada a responsabilidade de acrescentar o mundo ao mundo habitual. Kant diz “O gênio é a disposição nata do temperamento através do qual a natureza impõe uma regra a arte” O artista criador de uma realidade sem precedentes vai reivindicar autonomia. Na Alemanha se diz que se passa com facilidade do gênio ao demoníaco. Por isso o conceito de gênio (do século XVIII) convive com a colocação de regras. De qualquer modo, o final do século irá renascer o mito de Prometeu, com o que a nele de esforço heróico e de revolta contra as prerrogativas da divindade. “O gênio transmite vida àquilo que toca” (Starobinski, 1994)
Com o Empirismo e o Cartesianismo o sujeito torna-se o foco de interesse da filosofia e ocorre o deslocamento do estudo do objeto do conhecimento ou da beleza para o sujeito que a percebe. Se há liberdade de criação também há para emissão de juízos e do gosto.
O declínio do objeto absoluto clássico pode ser verificado tendo como pano de fundo o paisagismo inglês, de conceito pinturesco, que é pontuado de edifícios, extratos de história, traduzidos em objetos agora relativos. Neste jardim planejado para ser natural, preconiza-se que “o percurso racional da civilização é natural” diz Tafuri. Por outro lado, o Campo de Marte de Piranesi adverte que é na cidade que o somatório de objetos arquitetônicos, que buscam caráter e expressão são privados de sua autonomia. O equilíbrio entre contexto e objeto, cidade e edifício, se articulava como uma luta entre as “ instâncias da ordem e o domínio do informe”, tendo com resultado “ a destruição do próprio conceito de arquitetura”, de acordo com Manfredo Tafuri, constituindo sua crise do objeto.
Nos Carceri de Piranesi, Tafuri lê a enunciação da destruição do conceito de espaço na dissolução da centralidade da composição perspéctica, que denuncia o questionamento da “ordem antiga correspondente a totalidade da desordem”.
A natureza informe e muda em Boullé, em Baudelaire “é um templo de múltiplos pilares”, mas não para ser representada fielmente; fala aos pintores, que queriam apenas representar fielmente a natureza : “Os artistas que querem exprimir a natureza, mas não os sentimentos que ela inspira, submetem-se a uma estranha operação que consiste em matar dentro deles o homem pensante e sensível, e, infelizmente, acredite que, para muitos, essa operação nada tem de estranho nem doloroso”.
E contrapõe o problema da representação fiel ao problema da imaginação: “Descrédito da imaginação, desprezo pelo elevado, amor (não, essa palavra é bela demais), prática exclusiva do ofício, a meu juízo são estas, quanto ao artista, as razões principais de sua degradação”. Propõe o confronto arte e cultura.
A arte, enquanto processo de criação, produção, como processo formador, que pressupõe uma técnica, enquanto atividade prática,encontra na criação de uma obra seu objetivo final, o objeto é o habitat. A arquitetura seria uma reflexão sobre a prática, tal como diz Sophia Telles, remetendo a Kant, possivelmente. A “Crítica da Razão Prática” tem como objeto a liberdade, diz respeito a faculdade de desejar. Entende-se desejo como sentimento que não comporta uma falta, mas é encontro das causas. Mire no entendimento sobre o desejo no conceito de projeto de Vittorio Gregotti[11]:
“projeto é o modo através do qual intentamos transformar em ato a satisfação de um desejo nosso (...) Existe porém, implícito na palavra projeto um sentido de distância entre desejo e a sua satisfação, o sentido de um tempo preenchido pelo esforço em organizar uma série de fenômenos voltados para uma finalidade, num momento determinado do processo histórico. Tal objetivo deve realizar-se como ponto concreto que vem a ser presença e significado, para passar logo a ser matéria a resignificar e satisfazer um desejo ulterior”.
O o objeto é o habitat de fato?
Nelson Brissac (em Paisagens Urbans) se pergunta: “a arte possibilita a presença, é capaz de criar o lugar? Um “lugar” ( uma presença mostra que há lugar) acontece para além do caos, quando se sente a presença. A arte não vem se adequar às características do sítio : não se trata de ressaltar características ou magias do local, mas adicionar algo, redefinir (ao contrário do que queriam os contextualistas, que afirmam o pré-existente), criar lugar, transformar locais de passagem em lugares de experiência.
Para o próprio arquiteto, como diz Louis Kahn, o recorrer à matéria – que é o fazer, o fazer ser, a criação de presenças, é “o elemento que introduz o mensurável em nossa obra. Até que não entre em ação, tudo é essencial e coerentemente incomensurável.”
Arquitetura é assim considerada como presença, como intervenção num espaço complexo, num sistema de interfaces – em integração com outras linguagens e suportes. O campo de sua articulação, o lugar que a obra localiza, o conhecimento e a memória a que a obra remete, como também sua geometria e coerência interna são imprescindíveis, portanto, para essa leitura e aproximação total. Será a arquitetura capaz de fazer “lugar”, revelar a alma da cidade, despertar o mundo – em
meio ao desordenado urbano que é hoje o nosso horizonte? A arte poderá revelar novas imagens – num mundo saturado de telões e imagens lisas , midiáticas? Será a cidade capaz de ser palco de novas experiências – quando suas camadas e territórios já saturados estão densos de matérias, inscrições e representações?
Na realidade, a obra, de arte ou de arquitetura, constitui os marcos, as referências da história, da crítica, da teoria. É ela que realiza e que protagoniza os textos – portanto, a história da interpretação crítica está no texto como na obra.


[2] LACAN, J. O Seminário. A Relação de Objeto. Livro 4. p.13
[3] Id. Ibid.
[4] LÉVI-STRAUSS,C. O Pensamento Selvagem, p. 273-4
[5] Tzonis, Lefraive e Bilodeau . El clasicismo en arquitectura: la poética del orden. Madrid: Herman Blume, 1984
[6] CHOAY, A Regra e o Modelo. Ed. Perspectiva.
[7] Id. Ibid.
[8] DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Editora Graal
[9] ADORNO, Teoria Estética. P. 121 - 139
[10] TAFURI, Manfredo. Projecto e Utopia. Lisboa: Editorial Presença, 1985. p. 113
[11] GREGOTTI, Vittorio. O Território da Arquitetura. Ed. Perspectiva. p. 11-12.

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