Mediações históricas e sociais
Partimos da idéia de que tudo o que diz respeito à produção, ao uso e aos significados da moradia é fruto de processos histórico-sociais. Nada do que a ela se relaciona agora pode, sem mais, ser dito arcaico, natural, arquetípico, essencial – enfim, ahistórico. Os homens da caverna dormiam, mas não como nós; estima-se que dormiam pelo menos 14 horas por dia e de modo intermitente. Os nômades se abrigam, mas o fazem sem construções permanentes em locais fixos. Os índios Maxacali tem um certo senso de privacidade, mas relacionam-no à mata e não à casa, que para eles é lugar público. Há inúmeros exemplos de diferentes épocas, regiões e culturas para contradizer cada um dos pretensos sentidos universais da moradia.
Poder-se-ia objetar que dormir, comer ou buscar abrigo seriam, afinal, atos comuns a toda a humanidade, passíveis de alterações históricas apenas quanto às suas formas de manifestação, mas não em sua essência. Porém, cabe contrapor que não é possível separar tais supostas essências (sejam de ordem biológica ou de alguma ordem imaterial) daquilo em que se transformaram ao longo da história da sociedade. O filósofo crítico Theodor Adorno faz uma constatação incisiva nesse sentido: "A fome, entendida como categoria da natureza, pode ser saciada com gafanhotos e bolo de pernilongos. Para saciar a fome concreta dos civilizados é preciso que tenham algo para comer de que não sintam nojo, e no nojo e em seu contrário reflete-se toda a história." Até a fome e o nojo, de todos os sentimentos talvez os menos suscetíveis ao controle do intelecto, são histórica e socialmente mediados. O que as pessoas reais sentem não é fome em geral, mas uma fome tão específica que certos alimentos lhe servem e outros não (e por vezes, essa distinção é mais determinante do que o medo da morte).
Analogamente, as pessoas reais não sentem necessidade ancestral de abrigo, nem desejo genérico de moradia. Elas têm necessidades e desejos concretos, moldados pela sua situação social e histórica, tanto naquilo que uma pessoa quer, quanto naquilo que ela rechaça. Não existe "um modo intemporal de construir" que "tem milhares de anos de antigüidade e é hoje o mesmo de sempre" . Não é verdade que "a casa sempre foi o indispensável e primeiro instrumento que ele [o homem] se forjou" ou que "todos os homens têm as mesmas necessidades" . Tampouco a moradia se rege por uma "dimensão existencial [que] não é determinada pelas condições sócio-econômicas" e cujos "significados transcendem a situação histórica" . O fato de os procedimentos mais triviais de sobrevivência social nas cidades brasileiras da atualidade exigirem o comprovante de residência talvez diga mais sobre a importância e as funções da moradia nesta sociedade do que o diz o conceito de ser-no-mundo. Morar não é uma operação abstrata; morar é sempre morar desta ou daquela maneira e numa sociedade, mesmo que se more deliberadamente afastado dela. Morar também não é uma operação primitiva, primordial; nada mais inglês e setecentista do que o modo como Robinson Crusoe organiza o espaço de sua ilha e seus afazeres cotidianos. Morar é, em suma, uma prática que se dá na história e no espaço sociais. E da mesma maneira que as moradias e suas características se produziram historicamente, elas podem se modificar ou desaparecer.
O texto inteiro está neste site: http://www.mom.arq.ufmg.br/
ou em:
KAPP, Silke; BALTAZAR DOS SANTOS, Ana Paula; VELLOSO, Rita de Cássia Lucena. Morar de Outras Maneiras: Pontos de Partida para uma Investigação da Produção Habitacional. Topos Revista de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 4, p. 34-42, 2006.
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